quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Haiti, país ocupado.




Consulte qualquer enciclopédia. Pergunte qual foi o primeiro país livre na América. Receberá sempre a mesma resposta: Estados Unidos. Mas os Estados Unidos declararam a sua independência quando eram uma nação com 650 mil escravos, que continuaram a ser escravos durante mais um século, e estabeleceram na sua primeira Constituição que um preto equivalia a três quintas partes de uma pessoa.

E se perguntar a qualquer enciclopédia qual foi o primeiro país a abolir a escravatura, receberá sempre a mesma resposta: Inglaterra. Mas o primeiro país que aboliu a escravatura não foi a Inglaterra mas o Haiti, que continua ainda a expiar o pecado da sua dignidade.

Os escravos negros do Haiti tinham derrotado o exército glorioso de Napoleão Bonaparte e a Europa nunca perdoou essa humilhação. Durante um século e meio, o Haiti pagou à França uma indenização gigantesca por ser culpado da sua liberdade, mas nem isso chegou. Aquela insolência negra continua a ferir os amos brancos do mundo.

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De tudo isso sabemos pouco ou nada.

O Haiti é um país invisível.

Só se tornou famoso quando o terramoto de 2010 matou mais de 200 mil haitianos.

A tragédia levou o país a ocupar, fugazmente, o primeiro plano dos meios de comunicação. O Haiti não é conhecido pelo talento dos seus artistas, magos da sucata capazes de transformar o lixo em beleza, nem pelas suas façanhas históricas na guerra contra a escravidão e a opressão colonial. Vale a pena repetir uma vez mais, para que os surdos o oiçam: o Haiti foi o país fundador da independência da América e o primeiro país a derrotar a escravidão no mundo.

Merece muito mais que a notoriedade nascida das suas desgraças.

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Atualmente, os exércitos de vários países, incluindo do meu, continuam a ocupar o Haiti. Como se justifica esta invasão militar? Alegando que o Haiti põe em perigo a segurança internacional.

Nada de novo.

Ao longo de todo o século XIX, o exemplo do Haiti constituiu uma ameaça para a segurança dos países que continuavam a praticar a escravatura. Já Thomas Jefferson o dissera: do Haiti provinha a peste da rebelião. Na Carolina do Sul, por exemplo, a lei permitia prender qualquer marinheiro negro enquanto o seu barco estivesse no porto, devido ao risco de contágio da peste antiescravagista. E no Brasil, essa peste chamava-se “haitianismo”.

Já no século XX, o Haiti foi invadido pelos marines, por ser um país «inseguro para os seus credores estrangeiros». Os invasores começaram por se apoderar das alfândegas e entregaram o Banco Nacional ao City Bank de Nova Iorque. E uma vez que já lá estavam, ficaram durante dezanove anos.

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Chama-se «o mau passo» à passagem da fronteira entre a República Dominicana e o Haiti. Talvez o nome seja um sinal de alarme: está a entrar no mundo negro, da magia negra, da bruxaria…

O vodu, a religião que os escravos trouxeram de África e que se nacionalizou no Haiti, não merece chamar-se religião. Do ponto de vista dos donos da civilização, o vodu é coisa de pretos, ignorância, atraso, superstição pura. A Igreja Católica, onde não faltam fiéis capazes de vender unhas dos santos e penas do arcanjo Gabriel, conseguiu que esta superstição fosse oficialmente proibida em 1845, 1860, 1896, 1915 e 1942, sem que o povo se desse por achado.
Mas há já alguns anos que as seitas evangélicas se encarregam da guerra contra a superstição no Haiti. Estas seitas vêm dos Estados Unidos, um país que não tem 13º andar nos seus prédios, nem fila 13 nos seus aviões, habitado por cristãos civilizados que acreditam que Deus criou o mundo numa semana. Nesse país, o pregador evangélico Pat Robertson explicou na televisão o terremoto de 2010. Este pastor de almas revelou que os negros haitianos tinham conquistado a independência à França recorrendo a uma cerimónia vodu, e invocando, do fundo da selva haitiana, a ajuda do Diabo. O Diabo, que lhes deu a liberdade, passou a fatura enviando-lhes o terremoto.

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Até quando permanecerão no Haiti os soldados estrangeiros? Eles vieram para estabilizar e ajudar, mas estão há sete anos a desajudar e a desestabilizar este país que não os deseja.

A ocupação militar do Haiti custa às Nações Unidas mais de 800 milhões de dólares por ano.

Se as Nações Unidas destinassem esses fundos à cooperação técnica e à solidariedade social, o Haiti poderia receber um bom impulso para o desenvolvimento da sua energia criadora. E assim se salvariam dos seus salvadores armados, que têm alguma tendência para violar, matar e espalhar doenças fatais.

O Haiti não precisa que venham multiplicar as suas calamidades. Também não precisa da caridade de ninguém. Como diz um antigo provérbio africano, a mão que dá está sempre acima da mão que recebe.

Mas o Haiti precisa de solidariedade, de médicos, de escolas, de hospitais e de uma verdadeira colaboração que torne possível o renascimento da sua soberania alimentar, assassinada pelo Fundo Monetário Internacional, pelo Banco Mundial e por outras sociedades filantrópicas.

Para nós, latino-americanos, essa solidariedade é um dever de gratidão: seria a melhor maneira de agradecer a esta pequena grande nação que em 1804 nos abriu, com o seu contagioso exemplo, as portas da liberdade.

(Este artigo é dedicado a Guillermo Chifflet, que foi obrigado a demitir-se da Câmara de Deputados quando votou contra o envio de soldados uruguaios para o Haiti.)

Artigo de Eduardo Galeano, jornalista e escritor uruguaio, autor do livro "As veias abertas da América Latina". Tradução de Helena Pitta. Publicado originalmente em Brecha, Montevideo, 30/09/2011.

Fonte: Diário Gauche

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Quando os trabalhadores perderem a paciência


Fonte Imagem: Revista O Viés

As pessoas comerão três vezes ao dia
E passearão de mãos dadas ao entardecer
A vida será livre e não a concorrência
Quando os trabalhadores perderem a paciência

Certas pessoas perderão seus cargos e empregos
O trabalho deixará de ser um meio de vida
As pessoas poderão fazer coisas de maior pertinência
Quando os trabalhadores perderem a paciência

O mundo não terá fronteiras
Nem estados, nem militares para proteger estados
Nem estados para proteger militares prepotências
Quando os trabalhadores perderem a paciência

A pele será carícia e o corpo delícia
E os namorados farão amor não mercantil
Enquanto é a fome que vai virar indecência
Quando os trabalhadores perderem a paciência

Quando os trabalhadores perderem a paciência
Não terá governo nem direito sem justiça
Nem juizes, nem doutores em sapiência
Nem padres, nem excelências 

Uma fruta será fruta, sem valor e sem troca
Sem que o humano se oculte na aparência
A necessidade e o desejo serão o termo de equivalência
Quando os trabalhadores perderem a paciência

Quando os trabalhadores perderem a paciência
Depois de dez anos sem uso, por pura obscelescência 
A filósofa-faxineira passando pelo palácio dirá:
“declaro vaga a presidência”!

Mauro Iasi

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Carta Aberta à RENAJU

Nós, Renajuan@s, reunid@s por ocasião do XV Encontro Nacional da RENAP (Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares), ocorrido entre os dias 28 de setembro e 01 de outubro de 2011, no Centro de Formação Frei Humberto, em Fortaleza/CE, viemos, por meio desta carta, socializar nossas impressões e avaliações sobre o referido Encontro, bem como nossas perspectivas em relação à RENAP e à RENAJU.

O Encontro mostrou-se como um espaço profícuo para a troca de experiências, formação técnica e política, para o fomento de articulações regionais e fortalecimento do Movimento de Assessoria Jurídica Popular em todas as suas dimensões, e não apenas da advocacia popular. As intervenções, os debates, as oficinas, os grupos de trabalho refletiram o quanto as/os advogadas/os populares que compõem a RENAP estão inseridos/as nas lutas, na defesa dos direitos humanos e junto aos movimentos sociais e populares. O significativo número de estudantes também emergiu em nossas avaliações como um elemento salutar, à medida que é precisamente nos espaços das assessorias universitárias que, no momento atual, se forjam os novos militantes de direitos humanos no País, o que se incluí aí a advocacia popular.

Permitimo-nos, contudo, abrir um espaço de avaliação em que pudemos discutir e amadurecer alguns pontos que visualizamos serem passíveis de ponderações. A princípio, manifestamos nossas críticas no que toca à metodologia dos momentos, que, por vezes, tornou o debate não participativo, verticalizado e com predomínio masculino. Identificamos, nesse diapasão, a potencialidade dos espaços em que o debate e a construção de conhecimento tornaram-se efetivamente mais dialógicos e democráticos, como as Oficinas e os Grupos de Trabalho. Notamos também, ao longo dos momentos, a falta de exposição e de debate acerca dos horizontes e objetivos do Encontro, o que, indubitavelmente, dificultou a intervenção tanto de estudantes como de pessoas que estão se inserindo no espaço. No que concerne ao conteúdo político das mesas, avaliamos a necessidade do alargamento da análise de conjuntura posta no primeiro momento, no sentido de buscar conferir a este importante espaço maior pluralidade e aprofundamento.

Mas, a despeito das críticas e considerando as potencialidades do encontro já delineadas acima, consideramos que a aproximação entre a RENAJU e a RENAP faz-se necessária e estratégica para o fortalecimento das lutas populares e para a qualificação do debate e da atuação do Movimento de Assessoria Jurídica Popular, em que se insere a advocacia popular e a assessoria jurídica universitária.

Nesse sentido, com a intenção de fomentar o diálogo entre a RENAJU e a RENAP, propomos que o debate em torno da advocacia popular seja pautado nos próximos encontros regionais e nacionais da rede (ENNAJUP, ERAJU, ERENAJU) para que então possamos amadurecer o debate e pensarmos em possíveis articulações entre as Redes. Ademais, propomos que a RENAJU, sempre que possível, participe, reflexivamente, dos espaços da RENAP, o que decerto virá a qualificar e amadurecer as nossas avaliações coletivas acerca deste espaço e da advocacia popular como um todo, seus desafios, perspectivas e horizontes.

Fortaleza/CE, 01 de outubro de 2011.

Luciana Nunes – NAJUPAK/UFPA

Pedro Sérgio– NAJUP Isa Cunha/UFPA

Lucas Viera – UESPI

Heiza Maria Dias de Souza – CORAJE/UESPI

Acássio Pereira de Souza – CAJU/UFC

João Ezaquiel– NAJUP Direito nas ruas/UFPE

Carlos Everton – NAJUP Negro Cosme/UFMA

Glenda Almeida Moreira– NAJUP Negro Cosme/UFMA

Juliana Corrêa Linhares – NAJUP Negro Cosme/UFMA

Márcia Mileni – NAJUP Negro Cosme/UFMA

Paulo Corrêa Linhares – NAJUP Negro Cosme/UFMA